Wednesday, September 26, 2007

Talvez...

"O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza o seu enlace com a vida despertada e ébria"
Thomas Mann - A Montanha Mágica

Excerto de uma obra possível não realizada ( I )

- Um homem disse na TV que no deserto a luz das estrelas produz sombras na areia. Na hora me pareceu algo muito bonito. Uma imagem bonita. Hoje eu penso que é difícil fugir do mundo. Ele está cheio de coisas lindas que não valem nada. Sabe? A luz do sol também poderia ser poética, mas não é. A droga do sol está aí fazendo sombras todos os dias. E quem é que disse que as coisas são mais belas só por que eu ainda não as vi? Explicar tirou a beleza das coisas, mas não explicar também é uma forma de feiúra. E agora... como voltamos lá pro meio daquele caminho? Como recuperamos nossa régua de medir o mundo?
- Talvez agora é que nós estejamos no meio do caminho. Ou nem isso. A própria pergunta parece tirar a importância da coisa toda, tu não acha?
- Não sei...
- Cara, eu quero beber.
- Eu também. E danem-se as sombras das estrelas.

Ligação

triririm, triririm...
- Alô?
- ...
- Alô?
- Oi...
- ...
- ...
- ... oi.
- Eu precisava falar contigo... Tu tem um tempo agora?
- Sim... Quer dizer, não muito. Tô saindo pra aula.
- Eu posso ligar pro teu celular.
- Não... pode falar, eu espero. Além disso eu mudei de número.
- É verdade.
- Por quê? Tu tentou me ligar antes?
- Não. O Jorge...
- Ah! Pois é... ainda não avisei todo mundo.
- Pois é...
- ...
- ...
- Então?
- Eu... eu nem sei o que eu queria dizer. Achei que ouvindo a tua voz eu saberia.
- Bom... tu está ouvindo.
- ...
- ...
- Ah, merda! Eu queria ouvir tua voz. Só isso.
- Olha... acho que não vou querer ter este tipo de conversa.
- E quem é que quer? Me diz, porra: quem é que quer?
... tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu...

Saturday, September 22, 2007

Francesinha

Ela tem um rosto de francesa
E uma boca... uma boca...
Ela tem uma rosa na perna
E as flores que quiser
Tem uma pinta no rosto
E mais pigmentos aqui e ali
Ela parece frágil
Mas tem olheiras
E, coisa linda e cômica,
Abre uma garrafa de cerveja
Com a força do dentes
Mas ela parece que pode se quebrar
Tão delicada no seu todo
Ela tem um cabelo mal tratado
E um mistério, ainda que sorria
Já eu apenas tenho uma certeza
Ela é hoje
E amanhã será mais ainda
Linda, linda, linda, linda...

Wednesday, September 05, 2007

Jogue sua TV no lixo!!!

Este texto foi publicado no jornal Diário de Canoas há alguns anos. Continuo com o mesmo discurso.

A programação da televisão é ruim por que um público medíocre exige assim ou o público é medíocre por que a programação ruim assim os tornou? Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Na verdade a discussão é irrelevante, todos têm consciência do ciclo vicioso, o que falta é iniciativa. Aliás, vicioso é a palavra correta, um termo para ser entendido literalmente. Estudos recentes mostram que a permanência na frente da telinha causa dependência. Lassidão, apatia, desânimo e preguiça são os sintomas apresentados pelos telemaníacos. Pode-se dizer que falta força, física e de vontade, para sair da frente da tv. Configura-se então o quadro característico dos fumantes, entre outros dependentes: a maioria sabe que faz mal, mas consome assim mesmo, dispõe-se a pagar o preço.
Alguns podem achar exagerado comparar a televisão com o tabaco, mas se fizermos uma análise mais radical, não será difícil chegar a números que tornam o aparelho mais nocivo do que o cigarro (em tempo, sou não-fumante). Inclusive seria justo dizer que o segundo deve muito do seu sucesso ao primeiro. A televisão é, como gostam de dizer alguns, um membro da família. O "grande irmão", como denominou George Orwell, ainda que em outro contexto. Sua abrangência é inquestionável, seu poder como ferramenta de vendas e manipulação é tão grande que assusta aos mais atentos e os faz pensar: "Tá degringolando... Imaginem se não tivéssemos órgãos reguladores".
Eu não olho televisão, mas o bombardeio é tão grande (jornais, revistas, internet, pessoas à minha volta) que se torna inevitável um mínimo conhecimento do que anda sendo veiculado. Não precisamos dissecar aqui as novelas excessivamente eróticas, os programas infantis pouco ou nada educativos, os programas de humor que são verdadeiros atentados à inteligência e outros exemplos da "arte" da imbecilização coletiva. Pra não abarcar um assunto que renderia páginas de crítica, podemos nos ater aos programas de auditório e ao jornalismo sensacionalista. Só isto já seria suficiente para justificar toda a degradação de valores morais, éticos, estéticos, humanos enfim, que se vê revolucionando as ruas. O mau caratismo destes dois tipos de programa reside no fato de se arrogarem nobres quando tudo o que fazem é promover e intensificar o já arraigado processo de alienação das pessoas. Os prejuízos são tão grandes que se fôssemos debitar na conta das emissoras, o mínimo que se poderia exigir é a prisão dos donos e o ressarcimento pelos anos de programação irresponsável. Essa programação garante audiência e gera lucros para as empresas a custo da exploração da pobreza, da ignorância, da vulgaridade e do desejo de projeção da massa ignara. Foi Andy Warhol quem disse que no futuro todos teriam seus quinze minutos de fama. Parece inverossímil que as pessoas se sujeitem a qualquer tipo de humilhação apenas para aparecer na televisão, mas é o que se vê em Programas do tipo "Ratinho", "Márcia", "Leão", "Datena" e tantos outros devidamente municiados de mulheres seminuas e quadros de "pegadinhas". Então temos quinze minutos de fama para trinta anos depauperados. Uma vida inteira, na verdade, se contarmos que essa "geração perdida" já não teve muita sorte no que diz respeito à situação política e econômica do país.
Chega de pão e circo, chega de embotamento e vida de ruminante. Jogue sua TV no lixo e vá ler um livro. É claro que você estará perdendo a parte boa da programação (que existe, é óbvio). Mas o que você ganha é incomensuravelmente maior do que aquilo que você perde. Elimine-se a televisão e teremos acabado com o maior instrumento massificador da nossa história. Ficaremos livres de quase toda a influência perniciosa que incute nas pessoas a necessidade de ser iguais. Livres do comportamento ditado pela mídia, livres das músicas tocadas à exaustão por conta de contratos com gravadoras, livres da ditadura das marcas e grifes, livres de uma sexualidade exacerbada que é nociva às nossas crianças, livres das novelas e dos enlatados norteamericanos, livres, enfim, para começar a desenvolver uma noção de individualidade e para pensar sobre o porquê da nossa sujeição a este tipo de narcose que é a televisão.

Duas da tarde...

- Vai até onde o fôlego deixar, guerreiro.
- Pára de me chamar de guerreiro!
- Tá bom, campeão. Mas vai lá... tu tem que tentar.
- Não me chama de campeão também, porra!
- Mas é assim que os caras se chamam lá na plataforma...
- Vão pra puta que pariu os caras da plataforma. Bando de idiotas...
- O que tu tá fazendo?
- Vou acender um baseado.
- Ô guerre... ô cara, isto não te faz bem. Não faz bem pro treino.
- É isso aí: não faz bem pro treino. Faz um bem danado pra mim, maninho.
- Ihh, já vi tudo... tu tá desistindo da competição.
- Não sei, cara. Talvez não. Mas agora eu preciso fumar unzinho, senão eu enlouqueço.
- Tá assim por causa daquela mina?
- Que mina, cara?
- Tá sim... já vi tudo. Tu nem pegou o troco do cachorro-quente quando viu ela com aquele magrão. Aliás, nem comeu o cachorro-quente.
- Tu tá doido, Benê! Não sei de que mina tu tá falando. E aquela salsicha tava estragada.
- Uhum...
- É... uhum sim, negão. Tá achando que sabe mais do que eu da minha vida, cara?
- Não...
- ...
- Mas a galera sabe que tu andou dando uns pegas naquela gatinha e tal.
- E daí, porra? Dei uns amassos, o que que tem?
- Te conheço há uma cara, campeão... tu ficou a fim da mina.
- Ah, essa é boa! A fim daquela vadia?
- Minha mãe lida com uns trabalhos de terreiro e tal, tu sabe. Ela disse que a Vandinha é bruxa. E ela te pegou, maninho.
- Pegou o caralho...
- Bom, guerreiro... melhor que não mesmo. Aquela guria é uma puta... uma baita puta. Ela andou dando uns tempos pro Zeréu, e todo mundo sabe que aquele negão tem gonorréia até por dentro dos zóios.
- Sífilis.
- Ãhn?
- O que aquele cara tem é sífilis.
- Como é que tu sabe?
- A Vandinha me falou.
- E como é que ela sabe a diferença entre gonorréia e sífilis?
- A irmã dela trabalha na Unidade de Saúde Comunitária. E a Vandinha convenceu o negão a ir até lá.
- Puta que pariu... Então o cara vai morrer?
- Que morrer o que, mané! As pessoas não morrem mais desta porra. Agora tem remédio.
- E a Vandinha?
- Fez uns testes... tava limpa. Aí saiu fora.
- E foi dar praquele porra daquele branquelo cheirador. Essas minas são tudo vadias, campeão.
- Quer um pega?
- Não. Tô fora, tu sabe. Meu lance agora é ajudar a gurizadinha da vila a se exercitar.
- Dá um tapinha aí, Benê. Tô vendo que tu tá louco de vontade.
- Não... passei.
- Melhor... mais me sobra.
- Mais e aí? Tu fissurou nesta tal Vandinha, né?
- Vai te fuder, negão! Vou te dizer, cara, essa mina fode de um jeito... puta que o pariu! O cara enlouquece. Mas não tô por essas, se tu quer saber.
- Então tá pela competição, né? Vamo encarar?
- Dá um tempo, porra! Deixa eu terminar o béqui.
- Pô, campeão... não vai falhar comigo. Arranjei esse tenizão aí pra ti só pra competição.
- Arrã... sei onde tu arranjou. Deste jeito eu também arranjo, zé mané.
- Não é roubado, não, maninho. Esse aí veio da grana do patrocínio.
- Rá, rá, rá, rá... Patrocínio, negão?!!! Tu é muito cara dura! Quem é que vai patrocinar essas merda de campeonato de vila?
- Veio uma grana da prefeitura, guerreiro. E também os comerciantes da vila tão apoiando.
- Sério, cara?!!! Rá, rá, rá... Esta é boa! Ontem tu assaltava na Rua Grande, hoje tu vai lá pedir patrocínio. Rá, rá, rá.
- Ti fudê, maninho. Nunca assaltei na Rua Grande. Muita chinelagem roubar dos de casa. E também não é eu que peço grana pra eles. Nem vejo os pilas. Só disse que tu precisava duns tênis e as minas do projeto trouxeram esses.
- Hum... Bem legais, mesmo. Bem legais. Até lavei os pés, cumpadi.
- Rê, rê, rê... Esses pés que vão fazer a gente ganhar a competição, campeão.
- Vamos ver, Benê... vamos ver.
- Vamos mesmo, rê, rê, rê.
- Ahhh... fumo do caralho, maninho. Melhor que isso só uma noitada com a Vandinha.

Saturday, August 04, 2007

Passeio

Ele descerá uma lomba da Altos da Bronze pensando que as ruas poderiam ser mais limpas e as calçadas melhor conservadas, mas que ainda assim tudo está bonito, bonito pra ele. Chegará à Praça da Alfândega e com os mesmos olhos que sempre se deixam fisgar vai admirar a bela arquitetura do prédio do Safra. Lembrará então do prédio do Santander. É preciso vê-lo. Dirá Oi, Drummond, tchau, Quintana... continência para o homem verde em cima do cavalo verde, e vamos indo. Neste dia estará imune à tristeza dos habitantes da praça. Crianças sujas estarão cheirando cola, homens desocupados estarão vendo com olhos embaçados um pastor com uma bíblia na mão que berra a plenos pulmões Por que Deus disse isso, por que Deus disse aquilo, arrependei-vos, pecadores! Um pouco mais de sujeira (Oh, quando isso vai ser como na Europa?), e então a construção que parece Ter sido lapidada ali mesmo, a partir de um gigantesco bloco de granito. Existirá no mundo coisa mais sólida? Olhará demoradamente sentindo inveja da ciência dos homens que idealizaram uma obra assim. Pensando em gruas, guindastes e escravos egípcios continuará a caminhar. Sete de Setembro e eis os pombos. Woody Allen atirava em pombos da sua janela em Nova York, pombos têm pulgas e fazem cocô no lindo prédio restaurado da Prefeitura, pombos escondem a fonte Talavera e iniciam uma revoada que pontilha o céu e inspira uma foto quando o estampido de um fogo de artifício faz eco nos edifícios do Centro, pombos alegram as crianças que tentam sem sucesso pegá-los e pombos estarão ali, nesse dia, tão indiferentes quanto sempre estiveram. Se dará conta de que está no marco zero da cidade e não poderá evitar o pensamento insistente de que em tudo há um significado, uma lição, um sinal, uma resposta... Mas não encontrará e pelo menos esta angústia deixará aos pombos, que é claro, não precisam de angústias. Será um dia quente do verão portoalegrense. O relógio digital estará com defeito e marcará 88:88. Ele dirá pra si mesmo eis a grande hora e depois dirá também chega de tiradas espirituosas, chega de exercícios diários pra manter o passo. Que calor, meu Deus! Ele dirá eu quis ser Stevenson, Conrad, Jack London... Rimbaud, mas eu já não suporto o calor. Pensará em como as outras pessoas conseguem viver sendo um arremedo de homens de verdade. Lembrará de como esteve sozinho nos últimos dias do ano que passou e da sensação mais intensa do que nunca de perda de massa, de vínculo e de certeza. O fim do ano foi barra.

Um texto...

Escrevi este texto há alguns anos, bem antes de entrar na Filosofia. Lembro que à época estava muito impressionado com o estilo do Borges e sempre quisera fazer um texto explorando uma situação tipo a de Joseph K. do Kafka. Mas também se poderá perceber algo de O Estrangeiro aí... Buenas, guarde-se as devidas proporções na leitura destas linhas.


Meu caro amigo, M.
Aqui, neste lugar remoto onde me encontro, a chegada de tua missiva consagra um dos traços vivos do teu caráter, a obstinação. Com efeito, somente um algoz da tua têmpera, dotado dessa pertinácia inabalável, para chegar tão perto de meus calcanhares. Todavia perceba, bom amigo, que apesar de me teres contatado tão imediatamente após o ocorrido naqueles fatídicos dias de ***, resulta bastante inócua a tua admirável façanha. Sei que dentro em breve outros estarão no meu encalço sem lograr melhores resultados do que este que obtiveste. Meus calcanhares, ao contrário dos de Aquiles, estão longe de ser o que há de mais vulnerável em mim. Tu, somente tu, sabes onde me atingir. Agora vejo que te subestimei e me preocuparia em não reincidir no erro se tudo já não estivesse pronto. Nenhum outro esmero é necessário para ocultar meu paradeiro. Estou muito longe da vida que me era familiar e visivelmente transfigurado pelos acontecimentos das últimas semanas. Bem se poderia afirmar que também eu morri naquele dia, e que este que agora te escreve é um outro homem. E na verdade é assim mesmo, não é, meu prezado amigo? Somos sempre outros, do contrário permaneceríamos congelados no tempo e no espaço. O que pode nos aturdir não é a rapidez com que esta mudança se opera, mas a qualidade do processo em si.
Estou também em um outro mundo, num lugar inverossímil, em nada assemelhado a qualquer dos pontos conhecidos na geografia de nossas viagens. Posso, sem incorrer na imprudência, te fornecer características genéricas do pedaço de chão onde vim estabelecer este meu retiro forçado. Trata-se de um vilarejo igual a tantos outros que proliferam às centenas, milhares, ao redor de centros industriais e de comércio. Mas não pense em grandes conglomerados, não alce tuas especulações a vultosas cifras. Mais esta dica te dou. Isto aqui é a periferia miserável que circunscreve a Cidade. Me reservo o direito de não revelar-te o nome de tal metrópole, mas te asseguro que também ela é pobre. Pela manhã bem cedo, horas antes de o sol surgir, um único ônibus, suficiente para o transporte de todos os trabalhadores, parte ruidosamente do centro da vila que se resume a um pequeno armazém e uma praça em precário estado de conservação. Sei disso porque moro perto e, como tua perspicácia já deve Ter sugerido, meus nervos ainda à flor da pele me fazem sobressaltar em resposta a qualquer ruído ou aparição. Tenho me esforçado para minorar esta susceptibilidade pois, como já observei, meu refúgio é inescrutável e portanto não há motivos para temores. Existem coisas, porém, que fogem ao nosso controle racional.
Antevejo uma prolífica correspondência entre nós, perspectiva que me enche de alegria e atenua algumas angústias que se assomam incansáveis por conta das divagações solitárias a que um pária como eu se torna propenso. Exercerás a curiosa função de meu potencial verdugo e interlocutor filosófico, e para tanto continuaremos a nos servir, eu da imparcialidade, e tu da solicitude, de nosso valioso amigo comum. Sim, tenho plena confiança em Orlando e seu inextricável quietismo cristão para intermediar-nos de modo eficaz. Orlando é o último reduto de uma força espiritual e telúrica que sobrepuja a nós todos. Eu o conheço há mais tempo e não tenho a pretensão de entendê-lo melhor do que outrem, mas angariei no decorrer dos anos de nossa convivência algumas de suas mais relevantes simpatias, o que alicerçou o tácito código de honra que, mais do que tudo, dignifica e valoriza uma genuína amizade. Contemplativo, sigiloso, místico, Orlando apenas sofrerá nesta incumbência a tenacidade de tuas arremetidas. Já o disse, tu és o detentor de uma vontade ferrenha, mas neste universo irônico em que vivemos, coisas mais sutis do que o ferro são por vezes mais resistentes. Sei que posso me valer da discrição de Orlando para manter fecunda nossa relação epistolar. É claro que me ocorre a hipótese de uma negativa tua, de uma recusa em participar, passivamente, deste Mea Culpa em caudalosas linhas. Caríssimo M., tu sempre primaste pela inteligência, és um amante da razão e um infatigável e já atribuíste à minha pessoa, quero acreditar que com alguma procedência, as qualidades de justo e sensato. Pela manutenção de tais conceitos e para inculcar no teu espírito uma centelha de dúvida, quiçá uma crise com relação às tuas mais arraigadas convicções, é que me disponho a escrever-te. Sei que semelhantes aspirações hão de motivar-te inversa e proporcionalmente. Sei também que as tuas réplicas serão ferozes e as espero mesmo com um afã masoquista. Na medida do possível tentarei me antecipar às tuas objeções. Visto que isso se configurará, alternadamente, em defesa e acusação, julgo diligente nos abstermos dos prolegômenos e generalizações que só atrasariam o termo satisfatório deste caso. A palavra é elucidação, mas será mesmo possível elucidar qualquer coisa quando o objeto em questão é um homem, um indivíduo e por conseguinte um único, aturdido, como só poderia estar, no olho de um furacão de paixões, medos, ânsias, desejos e frustrações? Apurar talvez sim, mas chegar a um consenso sobre culpabilidade me parece uma esperança bastante vã. Sobre quantos tomos haveremos de nos debruçar?
Suponho que a aparente desenvoltura com que estou tratando do assunto te impressione ou mesmo te revolte. Como atenuar este efeito? Me expresso como um homem que já teve a sua expiação, pois é assim que me sinto. Permita-me algumas elucubrações e, por favor, não me rechace de imediato quando proponho uma inversão cronológica neste contexto de causa e efeito ou, como melhor se adapta, de crime e castigo. Cumpri minha pena antecipadamente nos anos em que suportei, resignado, as agruras de uma relação que trazia incubado o germe da fatalidade, que engendrava sem o perceber, na economia lenta e gradual dos anos, os mecanismos que deflagrariam o ato extremo, mas não insano, do delito capital. Tu poderás contrapor que a sentença para um réu como eu é a prisão perpétua ou uma soma de anos que ultrapassa em muito os que antecederam a crise. Não ignoro a dimensão destas aplicações penais, mas não é dentro do já estabelecido pela sociedade organizada que tenciono achar o meu justo veredicto. Imagino neste momento a tua figura rindo irônica e pensando: “Então temos aí, no julgamento de foro íntimo o modelo de tribunal ideal? Que belo mundo será este nosso quando cada facínora se encarregar do ressarcimento, no peso e na medida que lhe parecerem cabíveis, para com a sociedade que lesaram”. Não sei se me tratarias por facínora, talvez preferisses uma denominação emprestada à patologia. Mas esta, que destoaria menos do teu caráter judicioso e diplomático, que faria jus ao teu rigor humanista, não obstante, seria ainda uma inverdade.
Acho impressionante, meu bom amigo M. (concedo-me a liberdade e o prazer, pelo menos até a próxima carta, de tratar-te ainda por amigo), que sejamos capazes de forjar realidades que hoje nos pesam terrivelmente, quando ontem uma simples menção destas realidades nos faria rir com ceticismo, atribuindo a uma disparatada fantasia a sugestão das mesmas. Logo vês que procuro deixar claro o quão inesperada foi também para mim a tragédia que protagonizei. Podes, desde já, descartar qualquer premeditação, insídia ou maquiavelismo. Sou o mesmo homem de outrora, considero-me um bom referencial de ética e integridade. Não penses que apenas barganho um indulto, quero empunhar uma bandeira que tremula sobre as mais variadas causas. Sem tomar o partido dos déspotas esclarecidos, quero me respaldar no pensamento de Nietzsche e citar um outro filósofo que disse: o homem estúpido é responsável (deve pagar) pela injustiça social que viceja graças à sua estupidez”.
Que tribunal me inocentaria, caro M.? Que magistrado, do alto da sua formação acadêmica, imponente na sua toga e cônscio das suas prerrogativas, avaliaria sob uma nova luz este que, tendo passado longe da escola superior e desconhecendo as instâncias hierárquicas que exigem uma vida destes solenes baluartes, tomou para si os poderes de juiz e, mais assombrosamente, também os de executor? Não me iludo e tampouco reverencio esta Justiça, meu amigo. Este Raskolnikov vai até o fim, sem se submeter às peias de uma moral precária, viciada e obtusa, hostil à realidade do homem “póstumo”, do reacionário à frente do seu tempo.

Friday, June 29, 2007

POR QUE SOU A FAVOR DAS COTAS!

Embora não tenha conhecimento de todos os argumentos contra (e nem dos a favor), um único fato já é suficiente pra me fazer decidir pelo SIM às cotas: a imensa maioria branca no ensino superior. Dê uma passeada pelos campi e observe isso.
Os grupos contra as cotas argumentam que as cotas é que são racistas, por que pressupõem que os negros têm menos capacidade que os brancos para passar no Vestibular. Eles - os que não querem as cotas - acham que não, que todo mundo tem igual capacidade intelectual. Buenas... até aí, todo mundo concorda. O sofisma está em usar isso como único fator determinante na questão da igualdade de condições. Os negros, desde sempre, tiveram menos acesso à educação e ao trabalho. De que cor são os garis e lixeiros que você conhece? De que cor, predominantemente, são os presidiários que você vê na TV? De que cor são, em sua maioria, os moradores das favelas?
Será que os negros são mais mau-caráter que os brancos? Será que a preguiça deles é maior e por isso eles não conseguem bons empregos? Será que eles são mais burros e por isso não chegam à universidade? Ôpa... mas o pessoal do Contra disse que não, que eles não são mais burros. Então?
Quem ignora que o Brasil tem uma dívida histórica com os negros, esses sim, parecem ter menos "condições intelectuais". Ou é isso, ou é o racismo criminoso, aquele bem arraigado que algumas pessoas cultivam lá no conforto da sua vidinha nada ética.

Tuesday, June 19, 2007

Escritores III

Isaac B. Singer, Luigi Pirandello, Alexander Soljenitsin, Friedrich Schiller, Françoise Sagan, Saul Bellow, Boris Pasternak, André Maulraux, Prosper Merimée, Ovídio, O. Henry, St. John Perse, Karl Marx, John Milton, Nelson Rodrigues, Monteiro Lobato, H. P. Lovecraft, Sinclair Lewis, Juan Ramón Gimenez, Tomasi di Lampedusa, Chordelos de Laclos, I. A. Richards, Herman Hesse, Jane Austen, Henry James, Homero, Bret Harte, Gunter Grass, William Golding, Thomas Hardy, Scott Fitzgerald, Flannery O'Connor, Théophile Gautier, Henry Fielding, Eça de Queiroz, Rabelais, Alexandre Dumas (pai), Denis Diderot, John Fante, Thomas de Quincey, Stephen Crane, John dos Passos, Edmund de Rostand, Gabrielle S. Colette, Louis-Ferdinand Céline, Geoffrey Chaucer, Otto Maria Carpeaux, Carlos Castañeda, Anthony Burgess, Ray Bradbury, Truman Capote, Blaise Cendrars, Georges Bataille e Isaac Asimov.

Sunday, June 17, 2007

Escritores II

William Blake, Wallace Stevens, Voltaire, W. B. Yeats, Virgínia Woolf, Walt Whitman, Charles Dickens, André Breton, Joseph Conrad, Andre Gidé, Antonin Artaud, Gillaume Apollinaire, Saint Exupéry, Giovani Bocaccio, Bioy Casares, Emily Brontë, William Burroughs, Lord Byron, T. S. Eliot, Raymond Chandler, Luís Vaz de Camões, Jean Cocteau, Daniel Defoe, Carlos Drummond de Andrade, Xavier de Maistre, Gabriel Garcia Márquez, Jean Genet, Ezra Pound, Allen Ginsberg, Erico Verissimo, Dashiell Hammett, Jonathan Swift, Jack Kerouac, J. D. Salinger, Rudyard Kipling, Stéphane Mallarmé, Guy de Maupassant, Arthur Miller, Herman Melville, Moliére, Milan Kundera, Maquiavel, Rainer Maria Rilke, Racine, Marcel Proust, Ernesto Sábato, Marquês de Sade, Arthur Rimbaud, Gertrude Stein, Georges Simenon, Walter Scott, Leon Tolstói, Timothy Leary e Stendhal.

Escritores

Victor Hugo, Júlio Verne, Paul Verlaine, Émile Zola, Ivan Turguêniev, Paul Valery, N. V. Gógol, Aldous Huxley, Dante Alighieri, Charles Baudelaire, Bertrand Russell, Albert Camus, Samuel Beckett, Charles Bukowski, Miguel de Cervantes, Conan Doyle, G. K. Chesterton, Lewis Carrol, Dalton Trevisan, F. M. Dostoiévski, Julio Cortázar, Goethe, Gustave Flaubert, William Faulkner, Henrik Ibsen, Ernest Hemingway, Máximo Gorki, Henry Miller, Italo Calvino, Jorge Luis Borges, James Joyce, Franz Kafka, Immanuel Kant, Mark Twain, Clarice Lispector, Jack London, Machado de Assis, F. W. Nietzsche, George Orwell, Oscar Wilde, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe, Platão, R. L. Stevenson, Robert Musil, Philip Roth, Jean Paul Sartre, Arthur Schopenhauer, Anton Tchekhov, Thomas Mann, William Shakespeare, Henry David Thoreau, Honoré de Balzac e Bernard Shaw.

Tuesday, May 08, 2007

Die Verwirrungen des Zögling Telmo

"Mas era exatamente isso que Törless não conseguia entender. Os planos pacientes que imperceptivelmente encadeiam os dias, formando meses e anos para o adulto, ainda lhe eram alheios. Assim também o embotamento que nem ao menos permite fazer indagações quando mais um dia se acaba. Sua vida estava enfocada sobre cada dia. Cada noite lhe significava um nada, uma sepultura, uma extinção. Ele ainda não aprendera a morrer a cada fim de dia sem se preocupar".
As Desventuras do Jovem Törless - Robert Musil

Vou morrer esta noite, carregado de signos e triste, uma tristeza vazia, tristeza de nada. Se enterrará comigo a incômoda certeza de que nem minha morte é minha. O que vai acabar hoje são as coisas em mim. Mas é claro, as coisas continuarão, nunca iguais, nem na mesma medida... mas sempre e sempre, como foi ontem e antes e antes e ainda antes de ontem.
Os coveiros dirão:
- Quem foi esse? Mais um buscador?
- É... mais um pobre miserável. Olha, mesmo agora, vazio, não perde o semblante solene, o rosto grave de tantas páginas. Vamos jogar terra nesta cara de bibliotecas. Mais terra.
- Não seria melhor cerrar-lhe as pálpebras?
- Ora, por quê? Não percebe o vítreo destes olhos? Eles nunca se fecharam, e é a única coisa que este coitado leva, a única coisa legitimamente dele... a busca.

Não estarão muito longe da verdade. Mas haverá um segredo sendo enterrado ali. Os signos flutuarão de volta reclamando as propriedades de onipresença e atemporalidade, mas comigo ficará um hiato, um lapso monumental de tempo e espaço que antes dessa cerimônia já me matou e ressuscitou impiedosamente - por que impiedosa e catártica é a cara lavada desta comédia. Há que se enxergar nesta hora: as coisas fazem uma volta completa, permeadas e permeando alegrias e tristezas, dores e prazeres, derrotas e vitórias, para fechar um círculo bamboleante onde bem se pode rir de tudo isso...
Mas há - escute bem, meu amigo - há um elemento que é o raio e a circunferência, a completa medida desta roda. Não creio que se tire da leitura esta noção. É antes um desde sempre embora saibamo-nos a partir de um dia. E mesmo assim, indefinido, não haverá quem ouse protestar esta certeza tácita, de raiz sutil e profunda, dedos úmidos da criança que sempre fomos, cavocando o húmus da terra. É só a verdade, e a verdade é Amor. Quem não se perdeu ou se acovardou sabe que de outra maneira não se poderia rir de uma besteira qualquer sem sentir o aperto na garganta que é já a corda do suicídio. Amar é um adiamento despreocupado, uma adiamento de si mesmo e a promessa do hoje amanhã, sem medo, sem tédio e sem cansaço.
Cavem, coveiros. Joguem sobre estes olhos a terra de milhões de anos e as palavras fáceis de se jogar. Vamos repetir isso por muito tempo ainda.

Monday, May 07, 2007

Ray Bradbury (1)

Tenho este material há anos. É um conto do Ray Bradbury (Fahrenheit 451, Crônicas Marcianas, etc) que foi publicado na Playboy (sim, eu curtia também as entrevistas e reportagens). É muito bonito. Lembro que, influenciado por este conto, comprei um livro do Bradbury intitulado "Morte é Uma Transação Solitária". Era uma incursão do cara no romance policial. Não ficou bom, infelizmente. Mas recomendo o Fahrenheit 451, que virou filme nas mãos do Truffaut (O Homem que Amava as Mulheres). O filme é sobre livros e fahrenheit 451 é a temperatura em que o papel entra em combustão, mas não vou contar o filme. Assistam! Por enquanto aproveitem esta história (tão bonita).

Ray Bradbury (2)

Ray Bradbury (3)

Ray Bradbury (4)

Ray Bradbury (5)

Friday, May 04, 2007

O Homem é Mau

Esse cara aí, de chapéu, certamente nunca leu sobre o Imperativo Categórico Kantiano (bom, eu também não, mas juro que não vou sair por aí escravizando aborígines). Foto triste pra caramba. Li "O Senhor das Moscas", do escritor britânico William Golding. É um romance de tese que fala da naturalidade do mal. O homem fora da sociedade, segundo o autor, retorna ao estado de natureza de Hobbes, volta à selvageria. Eu gostaria de contribuir com as idéias do "Seu" Golding e afirmar que nem a tal da sociedade tá segurando a natureza selvagem do Lobo Homem. Às vezes a própria sociedade, o Estado, é o predador do indivíduo. Ôpa... palavra bonita essa, né? INDIVÍDUO. Gosto dela. Mas talvez minhas predileções não valham. Sou misantropo, um pessimista e um individualista. Só acredito na revolução pessoal. Nós temos dois problemas: a natureza humana e a realidade física. Se não tivéssemos que disputar lugar no mundo, quase tudo estaria resolvido. Não é fantástico? Nosso problema é a corporeidade!

Friday, April 27, 2007

Os machões também brincam...

Eu, com as sandálias da minha colega, Clarissa. A idéia de ficar 10 cm mais alto (menos baixo, no meu caso) não é nada má, mas sei lá... não gostei da cor.

Everything about me!

Começando pelo começo, fui um espermatozóide bem rapidinho. Mas me custa acreditar que algum dia já ganhei uma corrida. Depois cresci... Não muito, é verdade. Tenho me mantido resignado dentro de medidas bem modestas. Porém, tenho extremidades desproporcionais: mãos grandes, pés grandes, orelhas grandes e grandes esperanças de que estudos frenológicos tenham descoberto alguma vantagem para quem tem um crânio desmesurado. Meu nariz também está longe de ser um atributo discreto. Além disso, não funciona bem.
Lá pelos meus 14, queria ser o Rambo, somente 10 anos depois a literatura me salvou. Então quis ser o Raskolnikóv, o Werther ou os lupinos do Jack London. O Rambo já era... se bem que sempre que penso em assassinar velhas usurárias me ocorre usar uma bazuca... (brincadeirinha, com a machadinha é bem mais divertido (ãh... brincadeirinha de novo).
Acho que sou meio esquisito. Os outros têm certeza de que sou. Desenho bem, mas graças a caras como Frank Miller, Horácio Altuna ou os irmãos Hernández, sou um frustrado. No campo da frustração pode-se ainda incluir: escritor frustrado, músico frustrado e fotógrafo frustrado. Assim sendo... vou ter que me contentar em ser apenas um sex symbol.
Esses dias estava somando os pontos de todas as minhas cicatrizes e cheguei a respeitável marca de 39. Sim, este corpinho tem histórias pra contar. Não vou narrá-las agora pois no momento estou lendo Raymond Chandler e correria o risco de glamourizar um pouco o que foram apenas acidentes, primeiro de uma criança, depois de um adulto inconseqüente. Pensando bem, de uma eterna criança inconseqüente (ah, como sou lindinho!!!).
Ano retrasado saí na Folha de S. Paulo por ter desenhado uma moeda que circulou no Fórum Social Mundial. Um mês depois saí na Zero Hora, no Listão dos Aprovados. Sempre achei que era muito inteligente. Minhas notas em Filosofia têm me feito repensar isso. Inteligentes mesmo foram o Aristóteles e o Arístocles. Esse último mais conhecido como Platão (é incrível, o mundo pensa hoje pela cabeça de Platão).
"Especialistas são pessoas que sabem cada vez mais sobre cada vez menos, até que um dia ficam sabendo tudo sobre coisa nenhuma". Essa frase é do Bernard Shaw e não há razão nenhuma para estar aqui, a não ser pelo fato de que eu adoro citá-la. Meu amigo Jeferson me disse que o conto "Do rigor na ciência", do Borges, é sobre isso. Passei a achá-lo muito mais legal depois da explicação. O texto, não o Jeferson.
E é isso... eu queria escrever mais, mas tem uma velhinha agiota batendo à minha porta.
Onde foi que eu meti aquela machadinha?

Meu amigo Gô

Eu tive um amigo muito louco. Fez todas as festas, experimentou todas as drogas, comeu muita gente... era um cara bonito. Serviu na Marinha e acho que nunca trabalhou (no que estava muito certo, o mundo é que tá errado pra quase todo mundo). Me apresentou as bandas Carcass e Canibal Corpse. Me deu todas as Love and Rockets que saíram no Brasil (raríssimas vezes me deram um presente tão bom). Tinha um brilho nos olhos e não apenas quando curtia umas carreiras. Uma vez brigou comigo por que eu fiz uma HQ na qual o Lobo e o Wolverine começavam se pegando no pau e acabavam se beijando, casando e abrindo uma lojinha sado-masô. Alguns anos depois acho que ele reavaliaria este caso.
Uma vez bateu no meu apê, lá na Protásio, e disse "vamos pra Três Coroas visitar o templo budista". Eu disse sim, pois estava há meses desempregado e pensando em congelar meu corpo até o ano 2100, pelo menos. Fomos. Chegamos a Três Coroas no fim da tarde e subimos a montanha. No meio do caminho começou a chover e de repente escureceu. Eu tive uma crise de asma e estava sem bombinha. Quando chegamos lá em cima fomos recepcionados por três buldogues com caras nada budistas.
- Tenho medo de cachorro - eu disse.
- Fica tranquilo, eu tenho o poder da mente - disse o meu amigo.
É... tudo bem, mas eu não tenho. Pensei comigo.
Mas passamos incólumes. Uns norteamericanos de cuidavam do lugar vieram conversar com a gente (um deles parecia o Highlander)
- Eu e o meu amigo viemos conhecer o templo - eu disse - Vai ser ótimo ficar uns dias por aqui, já que a hospedagem e a comida são de graça, amigo budista.
Mas não, ao contrário do que o meu amigo afirmara, a comida e a hospedagem não eram de graça.
E agora?
Os americanos foram gentis e nos ofereceram carona até Taquara, onde poderíamos pegar um ônibus de volta. Adeus Riponchê, adeus energias telúricas, adeus uma, duas, três coroas...
No caminho meu amigo começou a conversar com um dos dois budistas.
- Pois é... eu vim aqui pra convencer o Riponchê que o lance não é o Budismo e sim o Taoísmo.
O cara olhou pra nós.
Eu disse - não tenho nada a ver com isso, essa é a opinião dele - e era mesmo, eu nem sabia da história.
O Riponchê morreu alguns anos depois, provavelmente sem ter descoberto o quanto o Taoísmo era melhor que o budismo.
Mas no caminho eu pensava com meus botões ainda molhados: como a gente vai voltar pra Porto Alegre se não temos dinheiro pra passagem?
Quando descemos da picape eu disse pro budista que não tínhamos dinheiro e perguntei se ele não estaria interessado em comprar um livro que eu trouxera comigo (Os Trabalhadores do Mar, do Victor Hugo, um dos romances mais bonitos que eu já li). Ele respondeu que a leitura dos budistas se resumia aos livros da filosofia de Buda, mas perguntou de quanto precisávamos e deu umas três vezes mais do era necessário. Quase virei budista na hora.
Fomos então à rodoviária. Surpresa!!! Não tinha mais ônibus pra "Capitar". Só às 5 da matina. Mas nos aconselharam a tentar alguma coisa na Faculdade de Taquara, lá havia uns ônibus que levavam alguns alunos que residiam no Vale do Sinos. Beleza! Lá fomos nós. Mas novamente Não! "Os ônibus são fretados pelos alunos, eles não vão gostar de ver estranhos... vão se sentir inseguros, blá, blá, blá...".
Fomos pra um barzinho onde rolava uns agitos. Bebemos e jogamos snooke até sobrar o dinheiro exato pra passagem. Quando tudo acabou fomos pra rodoviária dormir nos bancos duros e frios. E tava frio! Às cinco da madruga chegou o ônibus. Tri moderno... no século retrasado. Mas pelo menos era quentinho e podíamos nos estirar nos bancos. Outro engano! Acordei sendo cutucado por um trabalhador de cara amassada que me pedia um espaço pra sentar. O bus tava atrolhado, às cinco da manhã!!!
Chegamos em Porto Alegre uns cacos! Mas finalmente em casa. Como é bom a casa da gente, né?!!!
Meu amigo continuou pirando por mais alguns anos, até que um dia tomou uma overdose de Ectasy numa festa rave.
Lembro que ele sempre falava de uma guria da Playboy com quem ele tinha transado. Acho que era apaixonado por ela. Fico pensando se ela chegou a saber que ele morreu. Não sei... mas eu e mais alguns amigos, é certo, ainda sentimos saudades daquele maluco.