Friday, November 24, 2006

Queda

Tudo passava rápido
Sombras apenas
Mas era vôo
Um vôo arrebatador
As sacadas, as janelas
Sombras no desenho
Do vôo mergulho
E durou tanto!
Pensei em você
Entendi quase tudo
O medo e o êxtase
Um Ícaro sem traquejo
E o mundo subiu, ejetou-se
Quem, afinal, voou?
Eu voei, minha linda, eu voei
Sei que foi sem graça
Que foi sem poesia
O baque, essa agressão ao dia
É culpa minha, apenas minha
Você talvez tenha dito
E eu concordo
O vôo é só mais um egoísmo

O engano do tempo

Pedras com limo, dizem
São velhas senhoras
De sempre vestem verde
Em festas de dias chuvosos

As ruínas, murmura-se
São sábios anciões
Que do tempo tiram o pó
E da arquitetura, a certeza

A umidade é uma cúmplice
Acusa as ampulhetas
Renegando um apadrinhamento
Que aceitara quando garoa

O Vento flerta rasteiro
E daninho lembra às janelas
Que os dias já o iniciaram
Na arte de seduzir vidraças

A rede possuída de brisa
É louca de noites quentes
E a soleira fala em saudades
Pra moirões caducos curvados

As taperas, sabemos
São solteironas chorosas
Que iludidas com orvalhos
Pariram apenas décadas

Negro gato

Olá, eu sou o gato. Posso ver vocês aí embasbacados. Próprio do gênero se abismar por qualquer coisa. Coisa, aliás, de quem só tem uma vida pra desfrutar. Eu, ao longo das minhas sete, fui assaltado por um profundo desdém que me tornou indiferente até mesmo ao fascínio que exerço sobre os homens. Abomino sua jornada diária de trabalho tanto quanto repudio sua alegria pelos frutos do esforço. Eu, que aprendi a gerir com maestria o ócio, decreto execrável todo o suor, todas as tarefas. Se consertarem o telhado, saibam que lá estarei, acima de suas labutas, bocejando pra esse enfadonho ir e vir no qual vocês tanto insistem. Homens e cachorros... e baba reverencial. Perdoem se não paro de gargalhar - esse riso flui muito fácil desde o âmago e não encontra obstáculos na minha anatomia curvilínea. Mas se é em nome do decoro, eu paro. Devo lembrá-los que sou, acima de tudo, elegante. Só não me falem de complacência, sou sete vezes vivido para cair nessa de novo. E quando caí, podem estar certos, foi sobre quatro patas.

Maniqueísta

Eu sabia a diferença
Entre o certo e o errado
Entre o mártir e o odiado
Quando um dia você disse
Foi você quem me falou
Entre muitas outras coisas
Pra eu não ser maniqueísta
Então eu ri e coisa e tal
Só que eu acho que existe
Algo bom e algo mau

Aprendi a olhar as coisas
Com o seu jeito de ver
E quando dei por mim
Enxergava claramente
Dia após dia, todo dia
Eu fui bom
E isso era mau pra você
Eu fui mau sendo bom
E agora eu sabia
Que sabendo disso
Você poderia
Ser má para mim
Pois não seria!

Histriônico


O meu nome se insinua em frases cacofônicas
E perambula como samba-de-breque nas aliterações
Tudo o que sai de mim, gagueja-se
Me repeti mil vezes até perder o sentido
Agora me chamo Manjericão, Penico, Rolls Royce...
Poderia ser tão sereno, no entanto me traz problemas:
- Pare de saltar em cima destas sílabas! Me gritaram dia desses
Era um professor, eu acho, e era careca, quase sem nome
Fiz mira com meu guarda-chuva
E mandei-lhe uma tromba d'água
O que se pode esperar de um histrião na corda bamba?
Depois fiquei ali, parado, guarda-chuva pingando
Diria-se um "I" com circunflexo (que bonita invenção)
Mas o meu nome...
Meu nome só tem fonética quando a palavra é boa
E me chamar fica parecendo um preciosismo
É... é ornamento desnecessário este meu nome
Me redundo ao proferí-lo, sinto cócegas, rio...
Ah, por favor... não me chamem. Eu apareço.

A retórica masculina e o poder de síntese feminino

Ele – Então esse fardo tornou-se demasiado cansativo, pesado para além do que meus ombros de caçador, mantenedor e reprodutor poderiam suportar. Se eu beijava o chão, tenha certeza, não era uma reverência, eu me prostrava sob a pressão dos milênios, por que houve um erro; não sou um neandertal, sou uma conseqüência. Você deveria saber onde eu estou. Me situo além do vigor biológico e das bem irrigadas ramificações sangüíneas e terminações nervosas. Eu sou um estilhaço da TV, do jornal, do out-door, da revista, da cultura ocidental e da percepção de mim mesmo. Morri estupidificado, estulto, embotado, de uma overdose de informação. Havia o seu sexo intumescido e havia o convite original do sentidos, mas sobreveio a dissecação e a dissertação, o tratado e as divergências e todas as hipóteses para o que se justificava num abrir de coxas. Eu perdi o vínculo febril com essa fenda sísmica. Adentrei uma outra caverna que não a sua, não a de neandertal – e bastaria ser só instinto – mas uma que surgiu como que para me reduzir ao mais ínfimo dos ancestrais. Estou no breu desta morada rochosa e é sem nenhuma reação que vou me transfigurando nesse bicho amorfo – moderno com seus apetrechos eletrônicos e os símbolos do status consumista, mas amorfo. Agora estou quase extirpando a consciência dessa carne morta, desse apêndice que aponta na direção contrária à sua justa culminância...
Ela
– Meu bem... toma logo esse Viagra!

Monday, November 13, 2006

Fim

Todos os dias eu acordo e peço a ela: por favor me mostra, hoje, que você vale a pena. Mas ela não responde por que sequer ouve a súplica na opacidade de meus olhos. Ela nunca me sobressalta. Todas as manhãs eu espero que ela mergulhe em mim e resgate aquela inefável mulher que amei, a forma sob a qual ela se apresentou um dia. Mas ela é indefectível. Urge uma pontualidade britânica nos seus gestos gastos que já têm colocação milimétrica sobre a casa. Todos os dias eu me pergunto como pode ela se esquivar de um espectro tão amplo. Eu a busco, mas ela desaprendeu a língua que falávamos. Somos hoje íntimos estranhos que superaram até mesmo o constrangimento. E isso é aterradoramente o pior. Eu queria falar dos seus cabelos, mas eles não ondulam. Ela talvez queira comentar minha barba, mas eu não existo. Ah, Deus dessas pequenas mortes, a mulher que amei era única, mas esta que me ladeia está aquém de qualquer uma da rua. Vou dormir com todas agora. Verei chegar a época de um plantio torpe e semearei grãos de infidelidade. Grãos que vicejarão, como só poderiam fazer. Eu e esta que não conheço desgastaremos o solo numa monocultura de hábitos e nossos frutos nascerão secos, duros como pedra. Mas ela e eu permaneceremos ainda arraigados neste chão árido, esperando a chuva, esperando qualquer coisa...

Saturday, November 11, 2006

Homem Trapo

Ensandecido de existência
Vagava alheio a si mesmo
Curiosa de sua providência
A noite sempre o aguardava
Calçadas e jornais velhos
Eram íntimos incômodos, tenazes
O frio também
Sujo de mundo
Fedendo a ruas
Tinha métrica caótica nos passos
Tinha poesia
E mijava nas calças
Filetes de saliva
Irrigavam um emaranhado de fios
Enfeitados de gordura e sol
O torpor de sua indiferença
Dançava alegre sob vaias
Pois nunca fora estilístico ou a rigor
Apenas vertia de seus trapos
Que à noite o engoliam
O que dele era asco imensurável
Transpunha conceitos roçando o divino
Deus o via com o canto dos olhos
E franzia a testa.

Wednesday, November 08, 2006

Comunhão

No dia em que fiquei louco me encheram de gestos comedidos,
de palavras brandas e conselhos inócuos.
Tarde demais!!! - gritei pra eles - Tarde demais!!!
E continuei gritando, vociferando em transe, me apegando
a despautérios e abocanhando generosos nacos de mundo.
Como me fartei de mundo!
Um cais fez morada em mim e nele aportaram flibusteiros,
corsários, piratas e degredados.Vinham de todos os lugares,
mas sempre apátridas. Ancorei a Nau dos Loucos e depois
fui além. Seguia o eco de meus próprios gritos, guturais e de
plenos pulmões. Estava amando-os. Eu era um Narciso sonoro
que se redescobria em timbres, modulações, sonâncias e dissonâncias.
Penso que inventei uma nova língua, uma língua para o futuro.
Às pessoas de agora, só pude devolver seus olhares.
Foram tantos e tão displicentemente jogados que já não
tinha mais onde guardá-los. Se não os restituísse, certamente
prejudicaria seus donos, que temem a tormenta, a tragédia,
a cisão do mundo e o juízo final.
A mim, no entanto, ninguém ressarciu a coreografia das
esquinas em plena sintonia com a música do universo.
Isso pra não falar do difícil sincronismo - árdua e deliciosamente
conseguido - entre minha dança e o coração das coisas.

Opinião

Artigo que escrevi e saiu publicado numa edição do jornal Diário de Canoas, há uns três ou quatro anos. É textinho quase ingênuo, mas tudo bem... eu sou um cara ingênuo.