Wednesday, September 26, 2007

Talvez...

"O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza o seu enlace com a vida despertada e ébria"
Thomas Mann - A Montanha Mágica

Excerto de uma obra possível não realizada ( I )

- Um homem disse na TV que no deserto a luz das estrelas produz sombras na areia. Na hora me pareceu algo muito bonito. Uma imagem bonita. Hoje eu penso que é difícil fugir do mundo. Ele está cheio de coisas lindas que não valem nada. Sabe? A luz do sol também poderia ser poética, mas não é. A droga do sol está aí fazendo sombras todos os dias. E quem é que disse que as coisas são mais belas só por que eu ainda não as vi? Explicar tirou a beleza das coisas, mas não explicar também é uma forma de feiúra. E agora... como voltamos lá pro meio daquele caminho? Como recuperamos nossa régua de medir o mundo?
- Talvez agora é que nós estejamos no meio do caminho. Ou nem isso. A própria pergunta parece tirar a importância da coisa toda, tu não acha?
- Não sei...
- Cara, eu quero beber.
- Eu também. E danem-se as sombras das estrelas.

Ligação

triririm, triririm...
- Alô?
- ...
- Alô?
- Oi...
- ...
- ...
- ... oi.
- Eu precisava falar contigo... Tu tem um tempo agora?
- Sim... Quer dizer, não muito. Tô saindo pra aula.
- Eu posso ligar pro teu celular.
- Não... pode falar, eu espero. Além disso eu mudei de número.
- É verdade.
- Por quê? Tu tentou me ligar antes?
- Não. O Jorge...
- Ah! Pois é... ainda não avisei todo mundo.
- Pois é...
- ...
- ...
- Então?
- Eu... eu nem sei o que eu queria dizer. Achei que ouvindo a tua voz eu saberia.
- Bom... tu está ouvindo.
- ...
- ...
- Ah, merda! Eu queria ouvir tua voz. Só isso.
- Olha... acho que não vou querer ter este tipo de conversa.
- E quem é que quer? Me diz, porra: quem é que quer?
... tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu...

Saturday, September 22, 2007

Francesinha

Ela tem um rosto de francesa
E uma boca... uma boca...
Ela tem uma rosa na perna
E as flores que quiser
Tem uma pinta no rosto
E mais pigmentos aqui e ali
Ela parece frágil
Mas tem olheiras
E, coisa linda e cômica,
Abre uma garrafa de cerveja
Com a força do dentes
Mas ela parece que pode se quebrar
Tão delicada no seu todo
Ela tem um cabelo mal tratado
E um mistério, ainda que sorria
Já eu apenas tenho uma certeza
Ela é hoje
E amanhã será mais ainda
Linda, linda, linda, linda...

Wednesday, September 05, 2007

Jogue sua TV no lixo!!!

Este texto foi publicado no jornal Diário de Canoas há alguns anos. Continuo com o mesmo discurso.

A programação da televisão é ruim por que um público medíocre exige assim ou o público é medíocre por que a programação ruim assim os tornou? Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Na verdade a discussão é irrelevante, todos têm consciência do ciclo vicioso, o que falta é iniciativa. Aliás, vicioso é a palavra correta, um termo para ser entendido literalmente. Estudos recentes mostram que a permanência na frente da telinha causa dependência. Lassidão, apatia, desânimo e preguiça são os sintomas apresentados pelos telemaníacos. Pode-se dizer que falta força, física e de vontade, para sair da frente da tv. Configura-se então o quadro característico dos fumantes, entre outros dependentes: a maioria sabe que faz mal, mas consome assim mesmo, dispõe-se a pagar o preço.
Alguns podem achar exagerado comparar a televisão com o tabaco, mas se fizermos uma análise mais radical, não será difícil chegar a números que tornam o aparelho mais nocivo do que o cigarro (em tempo, sou não-fumante). Inclusive seria justo dizer que o segundo deve muito do seu sucesso ao primeiro. A televisão é, como gostam de dizer alguns, um membro da família. O "grande irmão", como denominou George Orwell, ainda que em outro contexto. Sua abrangência é inquestionável, seu poder como ferramenta de vendas e manipulação é tão grande que assusta aos mais atentos e os faz pensar: "Tá degringolando... Imaginem se não tivéssemos órgãos reguladores".
Eu não olho televisão, mas o bombardeio é tão grande (jornais, revistas, internet, pessoas à minha volta) que se torna inevitável um mínimo conhecimento do que anda sendo veiculado. Não precisamos dissecar aqui as novelas excessivamente eróticas, os programas infantis pouco ou nada educativos, os programas de humor que são verdadeiros atentados à inteligência e outros exemplos da "arte" da imbecilização coletiva. Pra não abarcar um assunto que renderia páginas de crítica, podemos nos ater aos programas de auditório e ao jornalismo sensacionalista. Só isto já seria suficiente para justificar toda a degradação de valores morais, éticos, estéticos, humanos enfim, que se vê revolucionando as ruas. O mau caratismo destes dois tipos de programa reside no fato de se arrogarem nobres quando tudo o que fazem é promover e intensificar o já arraigado processo de alienação das pessoas. Os prejuízos são tão grandes que se fôssemos debitar na conta das emissoras, o mínimo que se poderia exigir é a prisão dos donos e o ressarcimento pelos anos de programação irresponsável. Essa programação garante audiência e gera lucros para as empresas a custo da exploração da pobreza, da ignorância, da vulgaridade e do desejo de projeção da massa ignara. Foi Andy Warhol quem disse que no futuro todos teriam seus quinze minutos de fama. Parece inverossímil que as pessoas se sujeitem a qualquer tipo de humilhação apenas para aparecer na televisão, mas é o que se vê em Programas do tipo "Ratinho", "Márcia", "Leão", "Datena" e tantos outros devidamente municiados de mulheres seminuas e quadros de "pegadinhas". Então temos quinze minutos de fama para trinta anos depauperados. Uma vida inteira, na verdade, se contarmos que essa "geração perdida" já não teve muita sorte no que diz respeito à situação política e econômica do país.
Chega de pão e circo, chega de embotamento e vida de ruminante. Jogue sua TV no lixo e vá ler um livro. É claro que você estará perdendo a parte boa da programação (que existe, é óbvio). Mas o que você ganha é incomensuravelmente maior do que aquilo que você perde. Elimine-se a televisão e teremos acabado com o maior instrumento massificador da nossa história. Ficaremos livres de quase toda a influência perniciosa que incute nas pessoas a necessidade de ser iguais. Livres do comportamento ditado pela mídia, livres das músicas tocadas à exaustão por conta de contratos com gravadoras, livres da ditadura das marcas e grifes, livres de uma sexualidade exacerbada que é nociva às nossas crianças, livres das novelas e dos enlatados norteamericanos, livres, enfim, para começar a desenvolver uma noção de individualidade e para pensar sobre o porquê da nossa sujeição a este tipo de narcose que é a televisão.

Duas da tarde...

- Vai até onde o fôlego deixar, guerreiro.
- Pára de me chamar de guerreiro!
- Tá bom, campeão. Mas vai lá... tu tem que tentar.
- Não me chama de campeão também, porra!
- Mas é assim que os caras se chamam lá na plataforma...
- Vão pra puta que pariu os caras da plataforma. Bando de idiotas...
- O que tu tá fazendo?
- Vou acender um baseado.
- Ô guerre... ô cara, isto não te faz bem. Não faz bem pro treino.
- É isso aí: não faz bem pro treino. Faz um bem danado pra mim, maninho.
- Ihh, já vi tudo... tu tá desistindo da competição.
- Não sei, cara. Talvez não. Mas agora eu preciso fumar unzinho, senão eu enlouqueço.
- Tá assim por causa daquela mina?
- Que mina, cara?
- Tá sim... já vi tudo. Tu nem pegou o troco do cachorro-quente quando viu ela com aquele magrão. Aliás, nem comeu o cachorro-quente.
- Tu tá doido, Benê! Não sei de que mina tu tá falando. E aquela salsicha tava estragada.
- Uhum...
- É... uhum sim, negão. Tá achando que sabe mais do que eu da minha vida, cara?
- Não...
- ...
- Mas a galera sabe que tu andou dando uns pegas naquela gatinha e tal.
- E daí, porra? Dei uns amassos, o que que tem?
- Te conheço há uma cara, campeão... tu ficou a fim da mina.
- Ah, essa é boa! A fim daquela vadia?
- Minha mãe lida com uns trabalhos de terreiro e tal, tu sabe. Ela disse que a Vandinha é bruxa. E ela te pegou, maninho.
- Pegou o caralho...
- Bom, guerreiro... melhor que não mesmo. Aquela guria é uma puta... uma baita puta. Ela andou dando uns tempos pro Zeréu, e todo mundo sabe que aquele negão tem gonorréia até por dentro dos zóios.
- Sífilis.
- Ãhn?
- O que aquele cara tem é sífilis.
- Como é que tu sabe?
- A Vandinha me falou.
- E como é que ela sabe a diferença entre gonorréia e sífilis?
- A irmã dela trabalha na Unidade de Saúde Comunitária. E a Vandinha convenceu o negão a ir até lá.
- Puta que pariu... Então o cara vai morrer?
- Que morrer o que, mané! As pessoas não morrem mais desta porra. Agora tem remédio.
- E a Vandinha?
- Fez uns testes... tava limpa. Aí saiu fora.
- E foi dar praquele porra daquele branquelo cheirador. Essas minas são tudo vadias, campeão.
- Quer um pega?
- Não. Tô fora, tu sabe. Meu lance agora é ajudar a gurizadinha da vila a se exercitar.
- Dá um tapinha aí, Benê. Tô vendo que tu tá louco de vontade.
- Não... passei.
- Melhor... mais me sobra.
- Mais e aí? Tu fissurou nesta tal Vandinha, né?
- Vai te fuder, negão! Vou te dizer, cara, essa mina fode de um jeito... puta que o pariu! O cara enlouquece. Mas não tô por essas, se tu quer saber.
- Então tá pela competição, né? Vamo encarar?
- Dá um tempo, porra! Deixa eu terminar o béqui.
- Pô, campeão... não vai falhar comigo. Arranjei esse tenizão aí pra ti só pra competição.
- Arrã... sei onde tu arranjou. Deste jeito eu também arranjo, zé mané.
- Não é roubado, não, maninho. Esse aí veio da grana do patrocínio.
- Rá, rá, rá, rá... Patrocínio, negão?!!! Tu é muito cara dura! Quem é que vai patrocinar essas merda de campeonato de vila?
- Veio uma grana da prefeitura, guerreiro. E também os comerciantes da vila tão apoiando.
- Sério, cara?!!! Rá, rá, rá... Esta é boa! Ontem tu assaltava na Rua Grande, hoje tu vai lá pedir patrocínio. Rá, rá, rá.
- Ti fudê, maninho. Nunca assaltei na Rua Grande. Muita chinelagem roubar dos de casa. E também não é eu que peço grana pra eles. Nem vejo os pilas. Só disse que tu precisava duns tênis e as minas do projeto trouxeram esses.
- Hum... Bem legais, mesmo. Bem legais. Até lavei os pés, cumpadi.
- Rê, rê, rê... Esses pés que vão fazer a gente ganhar a competição, campeão.
- Vamos ver, Benê... vamos ver.
- Vamos mesmo, rê, rê, rê.
- Ahhh... fumo do caralho, maninho. Melhor que isso só uma noitada com a Vandinha.