As Desventuras do Jovem Törless - Robert Musil
Vou morrer esta noite, carregado de signos e triste, uma tristeza vazia, tristeza de nada. Se enterrará comigo a incômoda certeza de que nem minha morte é minha. O que vai acabar hoje são as coisas em mim. Mas é claro, as coisas continuarão, nunca iguais, nem na mesma medida... mas sempre e sempre, como foi ontem e antes e antes e ainda antes de ontem.Os coveiros dirão:
- Quem foi esse? Mais um buscador?
- É... mais um pobre miserável. Olha, mesmo agora, vazio, não perde o semblante solene, o rosto grave de tantas páginas. Vamos jogar terra nesta cara de bibliotecas. Mais terra.
- Não seria melhor cerrar-lhe as pálpebras?
- Ora, por quê? Não percebe o vítreo destes olhos? Eles nunca se fecharam, e é a única coisa que este coitado leva, a única coisa legitimamente dele... a busca.
Não estarão muito longe da verdade. Mas haverá um segredo sendo enterrado ali. Os signos flutuarão de volta reclamando as propriedades de onipresença e atemporalidade, mas comigo ficará um hiato, um lapso monumental de tempo e espaço que antes dessa cerimônia já me matou e ressuscitou impiedosamente - por que impiedosa e catártica é a cara lavada desta comédia. Há que se enxergar nesta hora: as coisas fazem uma volta completa, permeadas e permeando alegrias e tristezas, dores e prazeres, derrotas e vitórias, para fechar um círculo bamboleante onde bem se pode rir de tudo isso...
Mas há - escute bem, meu amigo - há um elemento que é o raio e a circunferência, a completa medida desta roda. Não creio que se tire da leitura esta noção. É antes um desde sempre embora saibamo-nos a partir de um dia. E mesmo assim, indefinido, não haverá quem ouse protestar esta certeza tácita, de raiz sutil e profunda, dedos úmidos da criança que sempre fomos, cavocando o húmus da terra. É só a verdade, e a verdade é Amor. Quem não se perdeu ou se acovardou sabe que de outra maneira não se poderia rir de uma besteira qualquer sem sentir o aperto na garganta que é já a corda do suicídio. Amar é um adiamento despreocupado, uma adiamento de si mesmo e a promessa do hoje amanhã, sem medo, sem tédio e sem cansaço.
Cavem, coveiros. Joguem sobre estes olhos a terra de milhões de anos e as palavras fáceis de se jogar. Vamos repetir isso por muito tempo ainda.